Aos 102 anos de idade, credora pode ter de esperar até os 117 para receber precatório

A viúva Alzira, de 102 anos, tem um precatório a receber em função da pensão que herdou do marido, Rubens, falecido há 34 anos. A dívida é por conta de uma correção na pensão do ex-capitão da Polícia Militar – cerca de R$ 80 mil. No dia 9 de novembro de 2010, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) baixou uma resolução que estabelece o prazo de 15 anos para que todos os precatórios sejam quitados. De acordo com a reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, embora a credora tenha boa saúde, “não é justo que lhe peçam tempo por um direito adquirido e negado”. Veja a íntegra.

O Estado de S. Paulo – 14/11/2010

A viúva Alzira e esse tal de precatório

Ela tem 102 anos e há 34 luta com o governo de São Paulo pelo pagamento de R$ 80 mil da pensão que herdou do marido, um galã fardado na imagem em preto e branco do qual ainda sente saudade

Flávia Tavares

Miudamente no sofá, Alzira beija a foto do dia de seu casamento com Rubens. “Como eu sinto falta do meu maridinho. Ele só me chamava de “minha querida esposa”, era tão bom”, suspira, ensaiando uma lágrima no olho direito, disfuncional depois de uma catarata e uma barbeiragem do cirurgião. Ela se casou com o capitão da Polícia Militar, ex-revolucionário de 32, em 1938. Ele morreu em 1976. Há 34 anos, portanto, essa senhora, hoje com 102, trava uma luta com o governo do Estado de São Paulo pelo pagamento de R$ 80 mil da pensão que herdou do marido. Mas o que dói mesmo é a saudade do galã fardado na imagem em preto e branco.

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Somente uma palavra inóspita como “precatório” para estragar a cena. A criatura que escolheu nomear “o pagamento de sentenças referentes a dívidas judiciais contraídas pela União federal e suas entidades” com esse termo – derivado do latim precatorìus e relativo à súplica, segundo o Houaiss -, certamente não conheceu dona Alzira, embora ela tenha nascido no longínquo ano de 1908, na cidade paulista de Taubaté.

Ao caso. Uma lei complementar do Estado de São Paulo, de 1978, determinava que fossem pagos a quem de direito 75% do salário do servidor público falecido. A Constituição de 1988, por sua vez, determinou que fosse pago o valor total. A família Araújo entrou com uma ação em 2000, passou a ganhar os 100% da pensão de Rubens, mas não recebeu os valores atrasados, de 1976 até ali.

Essa diferença virou um precatório em 2008 – hoje, ele vale cerca de R$ 80 mil. E dona Alzira virou estatística. Estima-se que no Brasil a dívida com cerca de 300 mil títulos dessa natureza, seja por pensão, desapropriação de imóveis ou outras pendências, já ultrapasse os R$ 100 bilhões. E a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) acredita que Alzira seja a mais velha entre os credores, pelo menos até que alguém comprovadamente mais sênior reivindique o recorde.

Rumo ao Guinness

As implicações jurídicas do caso são muitas e a trama se adensou na última terça-feira. Uma resolução baixada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) fixou em 15 anos o prazo para a quitação dos precatórios, corrigindo a Emenda 62, de 2009. Tal emenda deixava o prazo em aberto e somente obrigava Estados e municípios a destinar 1,5% de sua receita líquida mensalmente para o pagamento dos títulos. Com isso, a cidade de São Paulo, por exemplo, demoraria 35 anos para pagar o que deve, isso se nenhum novo precatório fosse emitido. “O CNJ tornou uma situação desesperadora em absurda”, resume Rafael Marcatto, advogado de Alzira e membro da Comissão de Dívida Pública da OAB de São Paulo e do Movimento dos Advogados dos Credores Alimentícios (Madeca). A OAB ainda espera que a Emenda 62 seja julgada inconstitucional.

Mas com o prazo de 15 anos, antes de receber o dinheiro, Alzira pode entrar para o Guinness – hoje, a mulher mais velha do mundo, a americana Eunice Sanborn, tem “apenas” 114 anos. Saúde para isso ela tem. Não fosse pelo fêmur quebrado em 1996 e pelas decorrentes dores na bacia, que a obrigam a usar um andador muito a contragosto, ninguém apostaria que ela é centenária. Não tem diabetes, colesterol alto, hipertensão, nada. Faz crochê e é viciadinha em caça-palavras. Ainda assim, não é justo que lhe peçam tempo por um direito adquirido e negado. “No Estado de São Paulo, desde que começaram os atrasos nos precatórios, mais de 40 mil pessoas morreram sem ser pagas”, ressalta Marcatto.

Embora as duas filhas possam receber quando a mãe se for, Alzira ainda crê que ela mesma vá usufruir desse dinheiro. “Quero muito ajudar minha família, minha nora, meus netos”, explica. Alzira teve três filhos – Renê, único homem, morreu quando tinha 50 anos, depois de complicações com os tiros que levou em um assalto, quando era motorista da Coca-Cola. A mais velha, Iaci, é professora e sofre do Mal de Parkinson. E Edna é contadora. Já são seis netos e oito bisnetos e, dos 11 irmãos que teve, só a caçula ainda está viva, com 94 anos.

Desgosto. A maldade dos precatórios está no fato de que não há punição para o devedor. Por lei, até poderia haver uma intervenção nos municípios e Estados que estão com a dívida muito alta. Mas vai encontrar um juiz que decida pela intervenção do maior e mais rico Estado do Brasil por causa de uma senhorinha de Taubaté. “Se é uma empresa particular, ela tem de pagar, ou vai à falência. Governo, não, fica impune”, lamenta Edna.

Como aquela outra Velhinha de Taubaté, personagem do escritor Luis Fernando Verissimo que era “a última pessoa no Brasil que ainda acreditava no governo”, Alzira mantém a esperança. Sua fé, no entanto, está mais em Nossa Senhora de Fátima, que já atendeu a tantas de suas preces, do que nos políticos. Quando completou 60 anos, lá em 1968, ela parou de votar – ela e todo mundo, é verdade, mas Alzira não voltou às urnas quando pôde.

Também não acompanhou a eleição deste ano, não teve paciência para ver governantes prometendo mundos e fundos enquanto deixam famílias penduradas na expectativa de receber. Alzira nasceu sete anos antes que a Velhinha de Taubaté e já sobreviveu à personagem, morta pela decepção com o escândalo do mensalão, em 2005. Espera-se que “desgosto” deixe de ser a causa mortis das velhinhas da cidade.

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